Branco Sai, Preto Fica de Adirley Queirós parte de um trágico fato real ocorrido em um baile “função” ou de Black Music em plena Ceilândia dos anos 80. Frequentado por jovens com idade média de 16 anos, o baile foi invadido por soldados da polícia que chegaram de cavalaria e helicóptero e sem motivos, começaram um espetáculo de violência contra seus frequentadores.
Dois personagens/atores são os condutores dessa memória não cicatrizada. Marquim (Marquinho da tropa) e Sartana (Shokito), ambos foram vítimas da violência ocorrida no baile da Ceilândia. Marquim levou um tiro e ficou paraplégico, Sartana tentou fugir pela porta da frente, foi atropelado pela cavalaria e teve uma perna esmagada e amputada. Estamos diante de uma tragédia corriqueira no cotidiano brasileiro, crimes de violência por parte do estado contra a população pobre e preta. Esse fator poderia levar o filme somente a uma natureza trágica, mas Adirley propõe uma nova e inédita abordagem, cria o que ele mesmo chama de ” filme vingança terrorista”.
Embora Adirley denomine Branco Sai, Preto Fica como filme de gênero, ele opta por um processo de desconstrução do próprio conceito de gênero. Primeiro parte de um acontecimento real para construir uma ficção e transforma essa ficção em filme vingança, como se fosse uma promessa de justiça ou acerto de contas, seus personagens depois de desventuras, retornam para revidar o tratamento violento que a sociedade lhes deu. Os personagens são como filhos natimortos da pátria que retornam para explodir os vícios de um Brasil calcado nos moldes do período colonial e escravocrata. Só se contentarão com a destruição total. Destruir para reconstruir. E no filme em questão, o que deve ser destruído é Brasília.
Na parte ficcional do filme, Marquim é um DJ de rádio, que em seus programas, nos narra o passado (documental) da vida na Ceilândia, dos bailes black, suas narrações são nostálgicas, ora divertidas, ora melancólicas. O personagem guarda dentro de sua casa uma máquina que destruirá Brasília com música das periferias. Na companhia do DJ Jamaica, Marquim grava em um registro documental, grupos de forró eletrônico, brega, rap, pancadão. Sua bomba sonora é a antítese da cultura do “bom gosto” das classes dominantes, eis a sua vingança. Satarna é um personagem sereno e inteligente, faz muito bem atividades manuais, conserta pernas mecânicas, desenha, cuida de sua casa e da boa forma de seu corpo e parece sempre estar em pleno equilíbrio, ajuda Marquim a construir a bomba que levará Brasília aos ares com o som da periferia. Ambos os personagens nos confundem, trazem muito dos próprios atores, se misturam. Nas partes documentais e ficcionais do filme nunca temos certeza se estamos diante de Marquim ou Marquinhos da Tropa, o mesmo acontece com Sartana e Shokito.
Em seu longa anterior, Adirley já havia ousado ultrapassar os limites entre ficção e documentário ao misturar no mesmo filme os personagens Dandara (documental) e Dildu (ficção). Ambos compartilhavam o mesmo espaço geográfico, a Ceiliandia. Seus trajetos, ficcionais ou documentais, esbarrarravam em enredos comuns do cotidiano, se tornavam compatíveis entre si ou a qualquer espaço suburbano do mundo. O drama de Dildo conseguia ser mais denso que um simples drama ficcional, refletia a própria possibilidade do real. Sua natureza era tão possível e tão viva, dialogava tanto com a rua e com a vida de tantas pessoas e do próprio ator, que acabava por superar o próprio gênero documental.
Um terceiro personagem de Branco Sai, Preto Fica, Dimas Cravalanças (Dimas Durães), vem do futuro em sua nave/máquina do tempo para juntar provas para processar o governo pelos crimes de violência contra a população de baixa renda. Dimas é um personagem fora de controle, vem de um futuro devastado sob o governo da Vanguarda Cristã. A nave de Dimas é um simples container, em seu interior, entre luzes, agitos ou calmaria, o personagem viaja no tempo, junta provas, fotos do baile, se expressa através de aglutinações de frases e pensamentos desconexos. Dimas é um personagem desesperado, vindo de um Brasil assassinado, pelo racismo, pela intolerância religiosa, pela ganância selvagem da classe dominante. Ele parece ter saído de um filme de Sganzerla ou Candeias. A velocidade com que dispara os seus pensamentos ou observações é uma espécie de exteriorização do pensar humano silencioso, algo parecido, mas de maneira diferente, acontecia quando os anjos no filme de Wim Wenders, Asas do Desejo, liam os pensamentos das pessoas: as frases se mostravam soltas e se encaixavam de alguma maneira, mesmo que confusas. O cérebro de Dimas Cravalanças está à mostra para o espectador, vivo, pulsante e embora não pareça, goza de extrema lucidez. O retorno de Dimas do futuro para o presente cobrando sobre as injustiças do passado, não deixa de ser também uma espécie de vingança. Não por acaso a inflamada fala final de Dimas dá lugar ao funk de MC Dodô:
“Bomba explode na cabeça e estraçalha ladrão
Fritou logo o neurônio que apazigua a razão
Eu vou cobrar e com certeza a guerra eu vou ganhar
Os truta e as correria vão me ajudar”
A quebra de limites entre documentário e ficção já fora demonstrada no passado de maneira brilhante em filmes com Mon, Un Noir (Jean Rouch) ou Iracema, Uma Transa Amazônica (Jorge Bodanzky/Orlando Senna). Além de quebrar essas barreiras, Adirley resolve transformar a ficção que poderia ser real ou documental em ficção científica. Estamos em uma Ceilândia do futuro. Ninguém pode ir a Brasília sem ter passaporte ou visto. Os moradores não devem sair de seu espaço periférico, não muito diferente do que acontece hoje em dia com a população mais pobre tendo que morar em lugares cada vez mais afastados. O futuro de Adirley é agora. A ficção científica de Adirley, além de flertar o tempo todo com o documentário, transforma as suas limitações financeiras em apogeu (como José Mojica Marins fez em seus primeiros filmes). Comparado às produções de longas comerciais (Globo filmes e companhia), Branco Sai tem um orçamento insignificante. O jeito então foi caminhar para a criatividade. A nave de Dimas é um container, a bomba com que Marquinho explodirá Brasília é uma simples caixa de metal, a maneira com que Sartana hakeia uma perna mecânica é filmada de maneira simples e sem maiores recursos. O final apocalíptico é mostrado em forma de histórias em quadrinho, feita a lápis. Em momento algum sentimos falta de efeitos especiais. Desta maneira, Branco Sai, Preto Fica acaba sendo uma lição de como o cinema de cada lugar do mundo deve procurar o seu próprio caminho sem se render às tendências hollywoodianas.
Adirley costuma classificar seu filme como “sessão da tarde”, diz que seu filme é como Mad Max (Geoge Miller), Blad Runner (Ridley Scott), Bruce Lee, filme de ação, filme pra assistir comendo pipoca. No entanto, o diretor opta por inventar a sua própria Sessão da Tarde, com sua própria linguagem, a Sessão da Tarde que é possível de ser feita na Ceilândia. O filme tem um tempo próprio, quase oriental, dialoga de certa maneira com Yasujiro Ozu, tem muitas câmeras estáticas. A ação do filme se reflete nos movimentos dos elevadores da casa de Marquim ou do metrô, movimentos verticais e horizontais. Esse conjunto de escolhas tão originais e adaptadas à nossa realidade resulta no ponto forte do filme.
O conceito de tempo e espaço de um De volta Para o Futuro (Robert Zemeckis) e demais filmes norte-americanos de ficção cientifica (tirando 2001 de Stanley Kubrick) chega a ficar pequeno e ingênuo perante a complexidade de Branco Sai, Preto Fica. Adirley recorre ao passado do país para falar do presente e do futuro a que caminhamos. Joga à tona fantasmas do passado do país, dos quais nunca conseguimos nos desvencilhar ao longo da história, como escravidão, opressão por parte das classes dominantes, ditadura militar e violência. Todos os temas os temas (do futuro) que o filme aborda são radicalmente atuais: isolamento periférico, violência policial, os evangélicos no poder (Vanguarda Cristã). O dramaturgo Plinio Marcos dizia que enquanto o Brasil não mudasse, as suas peças permaneceriam assustadoramente atuais. O mesmo efeito ocorre no filme.
Não se trata de uma ficção cientifica apenas, trata-se de uma ficção cientifica brasileira, ou melhor, de uma nova ficção cientifica, inédita em qualquer filmografia. O filme de Adirley destrói os limites do tempo diagnosticando os problemas do país que o tempo nunca conseguiu apagar. O tempo do Brasil e do próprio filme são estáticos perante a nossa impotência em resolver esses problemas. Se na série Mad Max a humanidade caminhou para e decadência e destruição, em Branco Sai, Preto Fica, a humanidade jamais saiu do lugar, nasceu da própria destruição. E na destruição permaneceu. O filme nos mostra um Brasil que se viciou no que tinha de pior para construir a sua própria história, feita de sangue a cada dia, sem cessar.
Branco Sai, Preto Fica nos mostra a periferia com o olhar interno, de dentro pra fora, como pouquíssimas vezes se viu no cinema nacional. Não satisfeito em subverter os conceitos de documentário, ficção, ficção científica e tempo, Adirley subverte também o conceito de política e de vingança. A sua vingança, mesmo explodindo Brasilia, é sutil, nobre, vem em forma de arte. A arte como insulto. A beleza como violência (a maneira com que o Brasil ao longo de sua história, sempre respondeu às suas desventuras). Estamos diante de uma nova espécie de terrorismo, artístico, fatal como transformação estética e política para quem assiste. Com o intuito de explodir Brasilia, Adirley acabou explodindo (para o bem) o próprio cinema brasileiro. Destruir para reconstruir.
Bela análise, Kiko! Tão sensível e poética quanto o filme. Não deixou passar nada em branco. Obrigada por compartilhar suas ideias e tudo de bom! Bjos
Republicou isso em Blog do Rogerinho.