O Som ao Redor – Kleber Mendonça Filho
por Kiko Dinucci
Na cinematografia brasileira, de décadas em décadas, pelo menos um filme se destaca como documento urbano de uma época, de uma tendência comportamental. Em São Paulo por exemplo, existem filmes que fizeram o raio x social da cidade, como São Paulo S.A, de Luis Sergio Person, O Grande momento, de Roberto Santos, Anjos do arrebalde, de Carlos Reichenbach, o curta A Cidade e o corpo, de Chico Botelho, ou o histericamente lúcido Cronicamente inviável, de Sérgio Bianchi. Nesse último, quase no fim do filme, uma das personagens proclama: “Não é a violência que assusta, a violência é fácil de ser controlada… o que precisa é detonar, é explodir, é aterrorizar”.
É a partir desse raciocínio que se desenvolve o universo de O som ao redor, de Kleber Mendonça Filho. Mas ao contrário do filme de Bianchi, onde a violência explode, no filme de Kleber o terror ameaçador persiste. Temos sempre a impressão de que a violência explodirá a qualquer momento, porém, o período de medo, de mau agouro, de ameaça, tortura mais do que qualquer consumação. Como se estivéssemos sentados defronte de uma panela prestes a explodir, sem hora exata, ouvimos apenas o anúncio, mal pressentimento, o som.
Em “O som ao redor”, estamos num bairro de classe média de Recife. A cidade está tomada pelo medo: medo social, medo financeiro, medo urbano. A cultura do medo que se espalha pelas grandes capitais brasileiras. A classe média é dilacerada pelo olhar de Kleber. Estamos diante de uma classe média perdida, sem rumo, que nunca conseguirá atingir a riqueza e que assiste apavorada ao crescimento da chamada classe média emergente ou à elevação social do proletariado nos últimos anos.
Essa classe média não é apenas um modelo fechado. Entre as personagens do filme, notamos basicamente três estágios sociais dessa classe média: a família tradicional, vinda do engenho, do coronelismo, representada pelo senhor Francisco (Waldemar José Solha) e sua família, os moradores dos grandes edifícios, que foram construídos sobre as antigas casas, e a classe média emergente, representada pela família de Bia (Maeve Jinkings) – a classe média mais pobre da rua. Enfim, a classe média de “O som ao redor” está longe de ser um projeto regular, horizontal.
A personagem que talvez seja a protagonista da trama é João (Gustavo Jahn), neto de Francisco. Ele está de certa maneira deslocado dos vícios socias que permeiam seu bairro e sua rua. Ao contrário do avô, que ostenta o poder a cada segundo, João não se encaixa no modelo da classe média recifense: ele transita por todos os lados, desde a sua família tradicional, aos flanelinhas da rua e também no bom relacionamento com a diarista que trabalha em sua casa. Apesar de ter dinheiro, João trabalha como corretor de imóveis, ganha comissões e consegue manter, no mundo em que vive, o mínimo de ética.
Notamos que a classe média deixa de ser apenas um degrau social financeiro e passa a ser um elemento comportamental, como se fosse um câncer, uma doença vinda do subdesenvolvimento intelectual de uma formação distorcida, oriunda dos moldes do Brasil colonial.
Nessa rua, onde Francisco é proprietário da maioria dos imóveis, existem personagens periféricos: o entregador de água que também é traficante, os ambulantes e, sobretudo, os meninos negros de bermuda e chinelo, que circulam qual sombras, ora nos telhados das casas, escalando prédios, ora subindo em árvores, pulando muros; não vemos nenhum roubar em momento algum, eles se apresentam apenas como pequenas assombrações urbanas para os moradores, fantasmas pobres, pretos, que rodeiam o bairro.
As personagens que alavancam a trama para a situação de tensão são Dinho (também neto de Francisco, de posição social privilegiada, mas que caminha pelo mundo do crime provocando pequenos furtos no bairro) e os seguranças, pessoas desconhecidas, lideradas por Clodoaldo (Irandhir Santos), que começam a oferecer aos moradores do bairro proteção particular. A presença desses seguranças dialoga com a paixão da classe média pelo privado: saúde privada, escolas privadas (para chegar às universidades públicas), bancos privados, ruas privadas. Privatizar é o meio mais fácil de se isolar em sua própria bolha social, de se proteger desses novos fantasmas urbanos.
A tensão cresce entre a rivalidade ameaçadora de Dinho (Yuri Holanda) com os seguranças e a presença autoritária de Francisco. Os seguranças propõem-se a acabar com os marginais do bairro, porém, nada podem fazer (embora haja vontade e ameaças) a Dinho, porque ele é protegido pelo avô. A categoria de segurança privada é tão deficiente e perdida quanto seus clientes, traz um discurso decorado de eficiência, organiza-se com seus celulares e rádios, tenta mostrar eficácia a cada minuto e aos poucos entra no time dos personagens marginalizados; os seguranças também são pobres, de pele escura. Além da primeira cena, em que aparecem oferecendo os novos serviços, são marcantes: o momento no qual ficam assistindo no celular a um vídeo de um segurança sendo assassinado e aquele em que escoltam de modo ameaçador um visitante estrangeiro perdido na rua. Aos poucos, os seguranças cometem pequenas infrações, batem em um menor, são condizentes com o traficante do bairro e se aproveitam da confiança dos moradores, transformam-se em um sintoma a mais da doente classe média.
A personagem Bia divide o seu tempo entre cuidar dos filhos, fumar maconha e incomodar-se com o cachorro do vizinho, que passa as noites a latir. Sua família é mais pobre que as demais da rua, mas aos tropeços sobrevive e inclui-se, por meio das pequenas conquistas de consumo, no meio em que vive. Essa sobrevivência está presente na cena em que Bia apanha da vizinha que se sente ofendida por sua TV ser menor e mais barata que a da rival. Mesmo rodeada pela família, Bia parece sempre estar sozinha, fechada em seu mundo. Um dos momentos mais marcantes do filme é a cena na qual a personagem se masturba na máquina de lavar, que se movimenta violentamente ao centrifugar as roupas.
Embora vejamos o filme muito a partir da ótica de Jõao, é Francisco a personagem essencial da trama. Ele é onipresente entre quase todas as outras personagens. Representa o Brasil arcaico, também procurando um espaço em meio às transformações. Se antigamente ele era o proprietário de quase todos os imóveis da rua, agora ele se adapta aos grandes edifícios que invadem o bairro. Seus imóveis vindos de riquezas de outras gerações vão sendo vendidos. Francisco representa o coronelismo tão presente no Nordeste e todo território nacional, uma reprodução da casa grande do engenho em pleno meio urbano. Assistindo ao filme, notamos o talento dos brasileiros de, em pleno século XXI, reproduzir os modelos do Brasil antigo. Se Francisco é o coronel, os seguranças são capitães do mato, Bia é uma escrava recém alforriada e João, talvez um abolicionista.
O ritmo tenso de O som ao redor lembra o Michael Haneke de Código de acesso, Caché ou A fita branca. O elemento dramático que mais colabora para o terror suspenso do filme é a presença da trilha, constituída de ruídos urbanos crescentes, feita por DJ Dolores. O som conduz cada espectador a seu terror particular, apenas promete e ameaça docilmente. É louvavel o modo como Kleber Mendonça Filho conduz essa tensão de maneira tão delicada, à flor da pele, e nos faz agarrar a poltrona, sofrendo enquanto esperamos o pior acontecer.
Em uma cena, Francisco – apenas de short, chinelo e camiseta – caminha de madrugada sozinho pelo bairro. Chega na praia escura. Apesar da tensão que sentimos, temendo o que pode acontecer a Francisco em uma cidade tão violenta, ele parece estar relaxado ao receber o abraço forte do mar. Vemos ao seu lado, fincada na areia, a placa alertando para possíveis ataques de tubarões. É a cena síntese do filme. Tudo pode ser perigoso dentro da cultura do medo.
O roteiro surpreende também no final, quando simplesmente desvia a atenção de uma possível tragédia anunciada para um novo conflito na trama, sintetizando ainda mais a confusão entre o Brasil contemporâneo e o Brasil arcaico que teimamos em carregar em nós.
Esse me parece o melhor, mais profundo comentário feito até agora sobre o filme.
Solha, parabéns pelo belíssimo trabalho! Abração
Kiko
Com certeza, Solha! Kiko dissecou o filme. Muito bom.
Reblogged this on Leila Jinkings – impressões.
Gostei muito do filme e do texto. Abre pra reflexões estimulantes. Só quero deixar registrado um comentário: concordo que João seja o personagem mais “ético” do filme. Mas sua atitude tem algo de familiar que me inquieta muito. Sua posição “militante” na causa do porteiro que será injustamente demitido vai só até a página 2. Ao primeiro compromisso pessoal, deixa a “bizarra reunião de condomínio” pra cuidar das suas coisas e, bom, dane-se o porteiro. Me inquieta perceber que a nossa geração (a atual classe média urbana esclarecida e de esquerda) tende a ser militante até um ponto em que atinja a zona de conforto. O bom moço do filme não rompe com o sistema de domição coronelista que lhe sucede, pelo contrário, se beneficia de um mercado imobiliário que reflete e reproduz a desigualdade. Anna Maria Andrade
Boa observação Anna. O fato de João não ser 100% ético é o que lhe torna interessante. A cena em que ele diz pausadamente, quase com culpa, para a namorada: é, sou rico, reflete bem esse conflito interno da personagem, de quem trafega entre os dois mundos.
Beijo
Muito bom o texto 🙂
Vi esse filme há um tempo, mas ainda tem me feito pensar. É dolorosamente convincente, porque é de um cotidiano que a gente conhece de perto.
Um adendo sobre o menino que aparece fortuitamente em algumas cenas: li que é uma alusão ao menino-aranha, uma lenda urbana de Recife. Era um menino que, no final da década de 90, escalava prédios e entrava em apartamentos para furtar objetos. Ele foi morto em 2005.
Gostei de seu comentário sobre Bia ser uma escrava recém alforriada. Que nada! Achei claustrofóbicas as cenas dela. Sempre em casa, se trancando no quarto pra fumar maconha, andando de carro com vidros fechados, fechando as persianas pro seu momento íntimo com a máquina de lavar… Rara a cena que ela sai de bicicleta.
Um beijo!
Acho que muito foi dito, não somente por essa crítica, mas por tantas outras que circularam pela rede, sobre a lógica da classe média nos centros urbanos, em como criam uma bolha, em como o Brasil arcaico dialoga e ainda está presente nesse processo desenvolvimentista de Brasil urbano. Escrevemos muito sobre isso, crítica também presente nas mesas de bar, mas que pela primeira vez chega ao cinema de forma tão sincera e delicada com em O som ao redor. E aí acho que está o que há de mais importante no filme: é uma das primeiras ficções contemporâneas que deslocam o cinema político das histórias “do povo” e passa a falar de si mesmo. Como bem afirmou Jean-Claude Bernardet, a luta de classes volta ao cinema com O som ao redor e volta a partir de um lócus, de um lugar de fala muito honesto, critica sabendo que faz parte de tudo isso. E isso, assim como o discurso, a temática e a forma fílmica diz tanto ou mais sobre O som ao redor e o cinema nacional.