ENTRE A FARSA E A VERDADE ABSOLUTA
Jean Rouch desenvolveu em sua filmografia, surpreendendo filme após filme, um novo jeito de fazer cinema. Ao vermos algumas de suas obras, não sabemos ao certo se estamos diante de um documentário ou uma ficção, um se entrelaça no outro, paralelos. Um exemplo radical é o filme “Moi, un noir” (Eu, um negro).
Rodado na Costa do Marfim na década de 50, o filme mostra o choque entre a África tradicional e o mundo moderno. Migrantes de todos os cantos procuram na cidade grande a promessa da prosperidade e de sua integração na sociedade urbana, incluindo nesse pacote as maravilhas do mercado e do consumo: nomes estrangeiros estão espalhados por toda parte, cartazes de faroeste norte-americano nos cinemas. Rouch acompanhará jovens nigerianos que vivem em Treichville, subúrbio de Abidjan. Desempregados, esses jovens trabalham em subempregos ou trabalhos informais. Rouch dá voz a um desses jovens, Edward G. Robson, nome fictício do ex-combatente da Indochina, expulso de seu clã por ter perdido a guerra e que agora luta sozinho na cidade grande para ganhar dinheiro. Edward apresentará ao espectador como é uma semana em Treichville. Rouch filmará o seu cotidiano, seus anseios, seus dramas. Seria um documentário convencional, se Rouch não passasse a Edward o cargo de narrador da história.
No decorrer do filme, Edward comenta, dubla diálogos e reinterpreta as cenas. Enquanto ouvimos em off o som direto do filme, em uma outra camada a personagem faz uma releitura de sua realidade.
Estamos diante de uma novidade até então. O antropólogo cineasta Rouch filma a realidade de Edward, que se transforma em narrador de sua própria história. A personagem vai distorcendo os fatos, expõe suas críticas, suas vontades e põe palavras nas bocas das outras pessoas filmadas. Estabelece-se a partir daí uma relação realidade filmada(diretor)/releitura da realidade(personagem).
A ambição financeira de Edward se resume a itens simples: comida, casa e mulheres. Enquanto o jovem narra sua vida cheia de dificuldades, começa a traçar, a partir da narração, um pouco de seu mundo ideal; cria-se uma espécie de “farsa”.
Rouch desdobra a estrutura em um novo item: a releitura da realidade filmada. Se na releitura da realidade, a partir da narração, o jovem reinventa o cotidiano, na releitura da realidade filmada, ele passa a trabalhar como roteirista improvisador de sua própria realidade. Nessa releitura, o ator e o diretor são coautores. Rouch aplica aqui a sua antropologia compartilhada, trata a personagem não como um objeto de estudo, mas sim como um participante, um cúmplice e parceiro. Rouch dizia que, em primeiro lugar, o seu público alvo era a própria África.
Outras personagens aparecem, entre eles Eddie Constantine, nome do ator famoso por fazer o agente secreto Lemmy Caution. Mas o Eddie de “Moi, un noir” é um esperto vendedor de tecidos, galanteador de mulheres. Para Edward, Eddie encarna o aventureiro bem sucedido. No que Edward perde, Eddie ganha. Outras personagens emblemáticas são: Tarzan, o forte taxista lutador de boxe e senhorita Doroty Lamour, uma espécie de musa de Eddie.
Nessa releitura da relidade, ora pela narração, ora pela interpretação, o imaginário do ator/personagem fala alto. O jovem sempre faz a analogia de suas dificuldades com os seus anseios e acaba por recriar a realidade a seu favor. Como, por exemplo, uma luta de box na qual ele sai vitorioso, ou na cena em que imagina Doroty como sua esposa.
A exploração do imaginário visceral do ator é o ponto máximo do filme. Embora ele manipule a realidade, encontra-se diante de sua identidade. Ao reproduzir coisas boas e ruins de sua vida, a personagem mostra ao público os dilemas da África moderna. Rouch sai vitorioso porque consegue transformar seu filme em um espelho para os seus protagonistas e consequentemente para o seu público.
Em “Moi, un noir”, já não importa se as personagens interpretam, encenam, são reais ou fictícias, o que importa é que os seus anseios e sonhos são humanos e, por isso, extremamente verdadeiros.
Moi, un noir
Costa do Marfim/França
1958
70 min.
direção Jean Rouch
com Oumarou Ganda, Gambi e Petit Touré
É bem semelhante a aproximação de “O Homem da Mata”, média-metragem pernambucano pouco conhecido, que encena com Zé Borba (mateus do cavalo-marinho de Grimário – Boi Pintado) o que esse homem-arte de Condado-PE sugeria: o tipo de herói e confrontos que ele dá como interessantes para um povo ver cinema. Também com golpes de box, de vez em quando.
Poxa André, queria ver esse filme, tu tem?
Abração
Apreciei suas impressões.